terça-feira, 29 de agosto de 2017

carbono

a decadência emerge dos olhos de mil mulheres cansadas.
joelhos dobrados, costas curvadas, queixo solto, olhos caídos, cabelo ralo, dentes fracos, unhas sujas, pés rachados, carne solta, pele acinzentada.
mente morta.
como um grão de areia que incomoda uma ostra a ponto de se transmutar em pérola
dos ossos exaustos de mil mulheres cansadas emerge a bruxa.

tecendo da memória os dias de brilho intenso
da teia dos meu cabelos trançados reconecto a um filamento que ainda é este corpo.
ancestrais
e minhas células se lembram por que carregam o peso de mil mulheres mortas.

o gosto do gozo, o suor, o lençol solto da cama, pelo de cachorro, língua áspera de gato, hálito quente
o estar farta

e da trança dos meus cabelos reverbera a estafa que aprisiona a consciência de mil mulheres cansadas.
se fecha os olhos inchados de lágrimas é no outro mundo que performa a dor de milhões de gotas d'água salgada.
se chora, se rega, se é vida, é o prazer da dor é amar cuidando é ser lindo sofrer pra nutrir
e a árvore de raízes profundas suga todos os nutrientes conquanto incapaz de perder o oco de sua copa rasa
com galhos anões truncados incapaz de dar folhas, flores, frutos ou asas
é karma

e dentro do ouvido zunindo ecoa o grito e mais alto ainda o silêncio de mil mulheres cansadas.

e o chicote na epiderme dos nervos que são cordas tensionadas te mantém incriteriosamente atenta.

e o tempo passa é dia é noite é madrugada é criança é velha é semente é morada é pó
uma entidade balança a saia e ao correr atrás de migalhas ressecadas me lembro da garganta seca por beber água corrente de cachoeira, sou minha vó

você se importa com uma velha cansada?

e no entanto transborda vida, abundância dada, é benzedeira é matriz é pé no chão, anca agachada, mão na terra, fertiliza e morre a esmo
deita arrependida e estupefata
e de carregar a humanidade adormece profundamente aprisionada em si

Nenhum comentário:

Postar um comentário