hoje senti aquele arrepio que vem de dentro da existência, talvez seja algo biologicamente tangível como uma ligação das células-tronco ao sustentáculo de toda vida.
gostaria de escrever sobre os lobos guarás e seus aulidos, sobre a curvatura do voo das aeronaves que ultimamente insistem em chocar, em pairar, em planar uma última vez toda vez, em alar os homens e mulheres ao seu derradeiro encontro. gostaria de escrever sobre a aerodinâmica dos mísseis, sobre a ontologia das ogivas e sobre o silêncio catatonizante que dura cerca de um milênio antes do estalido do espaço de um segundo. e também escreveria sobre as múltiplas deficiências auditivas e os zunidos fundos que existem no espaço onírico antes da vigília, no ouvido. porque o milton sabe, os sonhos não envelhecem.
ainda no sonho existem crianças que viram canídeos e pessoas com cabelos de miosótis e borboletas cujas asas são de arara vermelha. a insegurança do espaço sonho é o catalisador de todas as seguranças possíveis ao acordar. sou porque sonhei. na cidade escreveria sobre as cacofonias e as paisagens sonoras que gentilmente tento mostrar às minhas crianças. elas me falam sobre o barulho do vento e eu me pergunto em qual tenra idade o deixei de escutar. então eu escuto. componho a melodia com o vento, o que não capto, eu invento, e a intenção nem era rimar.
eu contentemente escreveria sobre os generativos artificiais de imagens, sobre as sequências genéticas e sobre o momento catártico em que a vida determina a distinção entre um beija-flor e um curumim. me perguntaria todos os dias: as inteligências artificiais sonham com os xapiris? ou são só as ovelhas elétricas analógicas dos tempos em que o futuro ainda figurava o espaço do sonho? faria um ode ao absurdismo e às deformidades geradas pela interpretação das imagens da humanidade feitas pelos super computadores, que talvez, confusos, ainda não sabem sonhar. diria sobre o fardo que as coisas carregam por serem coisas e sobre a sina de um contorno duro, um quadrilátero gigante ser alimentado por cabos rizomáticos que não transportam líquen nem formam pleuras, mas alimentam eletricamente o cubo estático em salas frias, que nunca dorme mas não pode dançar, e não sabe ser possível parar de pensar.
diria um olá às imagens acústicas da juventude que estão tão precocemente produzindo a sequência de roteiro dos pesadelos dos maquinários inteligentes. os glitches, os bugs, as falhas, e aquele momento suspenso do existir em que aprendemos a transformar formas orgânicas em demônios abissais.
enquanto eu escreveria sobre tudo isso estaria, num fundo ceruleano, emergindo um demônio abissal da mais magnânima doçura. nenhum computador o sonhou. ele veio do vasto do fundo oceano do incosciente, mas não do inconsciente artificial. ele veio e trouxe em sua pequenez o negrume de milênios em que já se sabe que preto é a ausência de cor. mas nada jamais houve tão colorido quanto os raios refratários do lume que o alcançou pela primeira e última vez.
antes de morrer no inconsciente ele carregou consigo a maior poesia contemporânea compartilhada. seu pequeno farol acoplado nos lembra que é possível ser bioluminescente, ou ainda, noctilucente, em toda essa madrugada em que não temos conseguido enxergar, para além de ver. um impulso elétrico me atingiria no que em mim ainda é vida e diria tudo isso a você.
eu escreveria.