segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

serena

prendi a respiração
para mergulhar
profundo
e de olhos fechados
criava mundos
batendo braço
batendo perna
e o cansaço
e eu lutando
e me debatendo
superfície longínqua
olhos fechados
e o ar faltando...
tinha mais medo
do oceano
do que da morte
tinha mais medo
das feras abissais
do que da morte
e o ar faltando...
e a água vindo
e a queimadura
debaixo d'água
coisa engraçada
sentir queimando
e batendo braço
e batendo perna
e os olhos fechados
e o susto vinha
e ia embora
até que o futuro virou
sonho
e a água vindo
a água entrando
serena braço
serena perna
e os olhos
eternamente abertos


[04/12/19]

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

necrofagia

a dor desanda
descompassa
desequilibra
a dor desanda
o peso nas ancas
a face ferida
a dor fustiga

a dor, semente
cresce rapidamente
destrói minha casa
enraiza o chão
onde eu plantava

a dor gigante
maior que um prédio
de dez andares
é a dor criança
grita os pesares
buscando um nexo

hora menina
hora moça
hora senhora
a dor faminta
tem muita força
consome o agora

e a poesia, coitada
jogada em escanteio
são só folhas rasgadas
alguns símbolos no meio

testemunhando
a dor mortal:

ontem morri sonhando
hoje comi meu cadáver matinal

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Dia 317

É ironicamente o dia 317 desse futuro insólito.
As mechas dos seus cabelos ainda se apresentam vívidas em minha imaginação.
Não houve se quer um dia em que fui dormir sem imaginar que você ainda estava ao meu lado.
Perdi o talento para amar e perdi o talento para a poesia.
Sua imagem acústica em minha memória é um constante atracar de ondas ígneas num porto frágil.
O futuro, de um púrpura neon, encontra-se irremediavelmente adormecido ou magicamente morto.
Eu estou no futuro.
Estou no futuro.
Sem o imantar da sua pele castanha encostada na minha.
Sem nossos tons se misturarem numa nuance intima.

Quando fui embora, sabia que estava atropelando o tempo.
E que o preço do contrato era o nunca.
O nunca mais convive nas roupas que não mais me servem, nas rugas adquiridas, no silêncio conquistado.
O nunca mais convive no pulsar acelerado das minhas veias saltadas.
Na solidão noturna (mesmo acompanhada).
Nas vagarosas horas de trabalho.
Do nunca mais eu já sabia. Só não poderia ter premeditado o peso do silêncio.
E como não ouvir a sua voz de repente se tornou um pesadelo anunciado.

Eu lembro dos dias de sol na grama com os cães em festa
E parece que sonhei.
Será que eu sonhei?
Por que agora, passado quase um ciclo inteiro, me vêm as memórias doces?
É a primeira vez que te escrevo desde então.

Eras minha maior e mais profunda certeza.

É duro caminhar por esse mundo sem certezas.
Tu tiveste o último resquício da minha meninice.
Acredito que tenhas visto o último lampejo de brilho nos meus olhos.
E aquela última possibilidade de errar.
Acredito que tenha te proferido meu último sorriso apaixonado.
Minhas últimas horas em contemplação grata por ter-lhe ao meu lado.
Meus últimos sonhos.

Eras minha maior e mais profunda tristeza.
A maior e mais profunda verdade.

Hoje vivo fisicamente no futuro.
E o pensamento ainda te jura amor eterno com as mãos sujas de amora.
Tua memória aproxima os monstros e demônios da morte.
Tua memória recorda às minhas células que já fui vida.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Medida Cautelar

Piso com a veemência de quem tem um compromisso urgente
Caminho pelo Passeio com a determinação de um burocrata
Creio ter ganhado até algumas rugas na testa...
A vida adulta me cobra que eu enfim seja gente
Mas tem uma parte em que preciso ser mais sensata
É na certeza profunda que viver de amor já não presta...

Pra isso não existe receita infalível
É preciso um relógio que conte os segundos
É preciso não ler romances profundos
E é mesmo preciso abstrair-se do sensível

Talvez seja monótono só confiar no factível
Mas torna-se estritamente necessário
Escrever poesias se torna quase impossível
E o vinho, um ferrenho adversário

Logo eu, tão dada às vãs divagações
Das horas de languidez apaixonada
Me vejo matando o ócio em proporções
De uma frieza quase que desesperada

A paixão levou-me os cabelos,
A rigidez dos músculos e seios
Introjetou meia tonelada de medos
Começou me comendo pelos dedos
Para depois me regurgitar apavorada
Mas a paixão não começa pelas beiradas
Graficamente uma flor brutalmente deflorada

Por seu caráter sorrateiro
Deve ser duramente combatida:
Declaro meu amor primeiro!
Com a certeza de só ter essa vida

Chega de experimentos mal sucedidos
Recebendo migalhas e traumas em troca
Nunca mais entorpecer os sentidos
É o preço que a mão do tempo provoca

Se ontem amei intensa e profundamente
Hoje me tenho quase que literalmente vacinada:
Não espero mais nada de nenhum tipo de gente
E do amor é que certamente não espero nada!